Uma médica pediatra que trabalha em UTI em São Paulo, fez um emocionante relato, sobre a forma como a maternidade a fez mudar a visão sobre o mundo e principalmente sobre a dor do próximo.
Priscila Rodrigues, pediatra em uma UTI, contou a revista Crescer para a jornalista Larissa Lopes, como o fato de ter se tornado mãe de Helena de 7 meses, mudou sua postura com relação ao seu trabalho e seu sentimento em relação aos pacientes e familiares deles.
“Você vai ver, sua vida vai mudar depois de ser mãe.” Ouvi essa frase inúmeras vezes durante a gestação. E eu sabia que mudaria, que minhas prioridades mudariam, meu sono, minha rotina, meu jeito de ver o mundo… só não imaginava o quanto essa mudança também viria acompanhada de dor.
Era para ser um plantão qualquer, num domingo qualquer. Afinal, eu já estava de plantão no dia anterior e a UTI estava um tanto tranquila, nenhum paciente grave.
Faz dois meses que retornei ao trabalho. Após o término da licença maternidade, a rotina está pouco a pouco se ajeitando — minha bebê fica bem com as avós, o que me permite trabalhar mais tranquila.
Ordenho leite antes do plantão, lavo a bombinha, desinfeto, guardo-a na bolsa para poder ordenhar novamente assim que tiver um tempinho. Dou um beijo na minha bebê, que está no colo da avó. Saio meio apressada e peço para ela se comportar, porque logo a mamãe estará de volta.
Chego no hospital. Do elevador, contemplo o dia lindo lá fora. O sol está se pondo e assim vou contemplando essa luz até o ultimo andar, onde fica a UTI pediatrica. Como de costume, vou mentalizando coisas boas.
No início do corredor, já avisto certa movimentação de pessoas, olhares tensos, enfermeiras apressadas. Viro o rosto em direção ao primeiro quarto à esquerda e vejo minha colega à beira leito solicitando que iniciem a dobutamina. Só pelo tipo de droga que estava sendo solicitado e pela face da minha amiga já percebo que estamos com um paciente grave. Ofereço ajuda prontamente, ainda com minhas roupas “normais” e com a bolsa na mão. Ela nega a ajuda e pede para eu vestir o uniforme com calma e comer alguma coisa antes. Bom, ela sabia que eu passaria as próximas 12 horas do meu plantão noturno naquele leito. As 12 horas mais tristes da minha vida profissional.
Retorno ao leito agora devidamente vestida, de tênis, cabelo preso, uniforme verde e coração apertado. Um coração diferente. Já vi inúmeros pacientes muito graves, já dei as piores notícias, mas agora meu coração era outro: era um coração de mãe, e não somente de médica.
No leito, me deparo com uma bela menininha de 2 anos, intubada, sedada, em choque séptico, um dos piores choques e de evolução mais rápida que já vi.
Me apresento aos pais e, pela primeira vez, pude sentir verdadeiramente a angústia daquela família. Era como algo maior nos aproximasse. Examino a criança a todo tempo pensando que poderia ser minha filha. Olho para as mãozinhas e penso que, há um dia, elas estavam brincando com areia no parquinho. Examino as pupilas e penso que, no dia anterior, aqueles olhinhos olhavam vidrados para a mãe ao acordar. Uma tristeza imensa invadiu meu peito e, ao mesmo tempo, uma vontade avassaladora de regredir aquele quadro, de fazer essa criança melhorar. “Ela vai sai desse choque”, pensava eu a todo momento.
Fiquei durante todo o plantão à beira desse leito. Conversei muito com os pais e criei um vínculo, uma empatia que jamais criei antes, porque, pela primeira vez, eu era mãe além de médica. Não que eu não tivesse empatia antes de ser mãe, mas agora eu sentia muito mais as dores daquele casal sentado diante de mim e de sua primogênita.
Corri contra o tempo. Utilizamos tudo que a medicina podia oferecer a um paciente com uma infecção tão grave, mas o choque não revertia e, a cada minuto, a criança piorava. Fazia muito tempo que não via um caso tão grave.
No término do meu plantão, a criança apresentou uma parada cardíaca que conseguimos reverter, porém, o quadro estava grave, muito grave… e eu não conseguia parar de pensar que poderia ser minha filha.
Ao me despedir dos pais, eu chorei com eles, chorei a dor deles e chorei porque eu já percebia qual seria o desfecho.
Eu nunca tinha chorado na frente dos pais de um paciente.
Fui para a casa com extrema tristeza. Na rádio tocava Let it be, dos Beatles, o que me fez questionar se realmente deveria haver alguma razão pra aquilo que aquela familia estava vivendo. Como haver uma razão para a perda de um filho?
Ao chegar em casa, abracei muito minha filha e disse que a amava. Chorei novamente, chorei a dor daquela família e chorei minha sensação de impotência.
Mais tarde, recebi a notícia de que a criança havia falecido. Infelizmente, um caso de evolução catastrófica.
A partir desse momento, me dei conta que não sou mais a mesma médica desde o nascimento da minha filha. A dor do outro me pertence muito mais.
Agora eu entendo quando as pessoas fazem cara de espanto quando digo que trabalho numa UTI pediátrica: “Como você aguenta lidar com tanta criança em estado grave?”
A partir desse plantão, estou pronta para dizer que eu sofro muito pela perda de um paciente, mas que minha busca para fazê-los viver é infinitamente maior.
Obrigada minha filha por ter me tornado um ser humano melhor e uma médica que passou a entender muito mais a angústia dos pais e seus filhos hospitalizados.